terça-feira, 28 de abril de 2009

Promessa

Eu juro que nunca mais escrevo poema - esse foi só por obrigação. E como eu não posto aqui há muito, não custa atualizar. Não me apedrejem :)

Parecia doer mais que qualquer castigo
Aquela saudade que lhe bateu pela manhã
Na cama fria, ela procurava abrigo
Ardiam seus ossos com a culpa vã

Cansada da agonia do sentimento antigo
Implorou com fervor a Deus e a Satã
Queria dormir em paz e consigo
Como se afastar de um ímã?

Então, despiu-se de sua lembrança,
Mergulhou na solidão coesa
E, feito borboleta presa,
Morreu em sua destemperança

terça-feira, 7 de abril de 2009

Tempestade

Uma forte tempestade caía lá fora. Os pingos grossos batiam pesadamente no vidro com a intenção clara de ultrapassá-lo. A água escorria sinuosa pelas janelas, pelas sacadas, pelas calhas e pelas paredes do prédio até chegar à rua e correr livre. Sandra estava encolhida num canto da cama desarrumada, os olhos grandes muito vermelhos e a calça de moletom manchada de café em diversos pontos. Olhava fixamente para fora, absorvendo a chuva. Sua maior vontade era pular dali e escorrer pra algum lugar. Bater forte nos guarda-chuvas, nas pessoas e correr sem precisar voltar. Ouviu o barulho da chave girando na porta, levantou-se e foi até o banheiro. Parou em frente à pia e, encarando o espelho, abriu a torneira e deixou a água cair em suas mãos. Queria ser fria daquele jeito e fugir pelo ralo sem dar satisfações.

Danilo entrou em casa encharcado, tirou o casaco e os tênis molhados e colocou-os sobre a bancada da cozinha. Sentiu um arrepio desagradável quando uma gota gelada escorreu da nuca até o meio de suas costas. Decidiu que faria um pouco de café para esquentar o corpo. Enquanto colocava a água no fogo, desabotoou os primeiros botões da camisa úmida, passou os dedos entre os cabelos negros e respirou fundo. Sandra estava parada na porta, os olhos atentos na chaleira.

-Não agüento mais - falou, a voz um pouco afogada. - Não te agüento mais.

A água no fogão começava a ferver. Danilo olhou para a mulher tempestuosa a sua frente e sorriu seu sorriso morno.

Sandra arregalou os olhos marejados e trovejou enquanto a água borbulhava.

As lágrimas quentes correram por suas faces rubras e trêmulas.  Ele colocou a água fervente no pó de café. Olhou novamente para a mulher. Segurou uma de suas mãos languidas com a sua mão forte e entregou a xícara de café a ela, que ainda soluçava baixinho. A chuva enfraquecia e o café esfriava bem devagar. Danilo a abraçou com todo o seu calor e uma última lágrima evaporou do rosto de Sandra, anunciando a calmaria.

 

PS: Se eu pudesse, eu chamaria esse texto de "o maldito texto do elemento que eu não sabia nem por onde começar", então peço desculpas se o texto não ficou legal o suficiente. Grata :)

Pedrinho

Quando nasceu, numa tarde em que o sol frio por mais que insistisse não esquentava o orvalho da grama, Pedrinho ainda não tinha nome. Ele era pequeno, frágil e passava o dia inteiro quieto em cima de um galho de árvore, esperando que a brisa leve ficasse forte o suficiente para sacudi-lo pra lá e pra cá. A mãe morreu cedo, e logo as lembranças dela que Pedrinho tentava guardar com toda sua força se perderam pelos porões da memória. Era o xodó do pai, o molequinho predileto. Sempre que o pai conseguia arranjar um pedaço de bolo de fubá da casa grande, levava para Pedrinho. E ele mergulhava no bolo, se lambuzava todo até a barriga doer.

Quando o tempo estava quente, gostava de correr pela grama alta, de escalar e escorregar em caules de flores-do-campo e de se afundar na terra para sentir seu cheiro forte de fazenda. Nunca se esquecerá do dia mágico em que subiu num cavalo e viu tudo lá de cima. Os pêlos eram muito escorregadios e foi muito difícil chegar até o topo, mas Pedrinho tinha certeza que seu espírito era aventureiro. Logo ficou maior e começou a ajudar em casa. O trabalho era arriscado, mas simples. As regras eram claras: sair de casa, buscar comida, voltar pra casa. Sem dar atenção pra estranhos ou se distrair pelo caminho – e não era difícil se distrair naquela fazenda grande e colorida, cheia de animais diferentes. Pedrinho foi disciplinado por meses, até que um dia encontrou Carolina.

Carolina era uma criança sorridente de tranças ruivas meio desfeitas, olhos castanhos muito profundos e cílios de boneca. Ela estava sentada no chão e divertia-se ao arrancar grandes tufos de grama, jogá-los para cima e observá-los caindo lentamente. Resolveu que estava cansada, deitou-se na terra fofa e observou as nuvens e o céu até cochilar. Pedrinho não conseguia tirar os olhos daquela criatura tão enorme e adorável. Aproximou-se o suficiente para observá-la em detalhes. Contornou o perímetro da garota adormecida diversas vezes até escalar seu rosto. Passeou por montanhas de pintas e lagos de suor, pelos cílios longos e pelos lábios úmidos de criança. Subiu até a ponta de seu nariz e ali ficou, observando a paisagem, orgulhoso de seu feito. Carolina acordou e viu Pedrinho em seu nariz. Ela ofereceu o dedo, ele aceitou sem pestanejar. Ficou ali, brincando nas ondulações das digitais de Carolina, que o olhava atentamente.

– Pedrinho, disse a menina. Vou te chamar de Pedrinho, que nem o meu primo.

Pedrinho não tivera um nome até então. Fora batizado por aquela coisinha rechonchuda e ruiva, aquela graça, aquele mimo. Pensou estar apaixonado, era jovem demais para ter certeza.

– Eu sou a Carolina, disse ela, apontando para si com a outra mão.

A tarde caía e o sol alaranjado refletia nas tranças desfeitas. Pedrinho resolveu que não voltaria mais para casa. Sabia que nunca encontraria outro ser como aquele.

- O meu primo, o Pedrinho, é muito mau comigo, comentou. Ele puxa as minhas tranças e sempre me engana no pique-pega. Hoje ele me fez chorar, sabia? Mas ele é muito maior que eu, aí eu sempre acabo apanhando quando eu tento revidar. – Ela subiu o indicador até a altura dos olhos e continuou – Sabe, eu queria muito bater no Pedrinho. Queria arrancar os cabelos dele que nem ele arranca os meus. Sabe o que eu queria mesmo? Que ele fosse do tamanho de uma formiguinha pra eu poder esmagá-lo assim, ó.

E Pedrinho, que ainda era jovem demais pra entender o amor, não entendeu o ódio de Carolina pelo outro Pedrinho. Entendeu menos ainda quando ela juntou o polegar ao indicador e aí ele não foi capaz de entender mais coisa alguma. 

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Monique

Os diversos frascos de comprimidos para dormir meticulosamente organizados na prateleira do banheiro denunciavam a insônia da mãe de Monique. As toalhas brancas tinham fiapos grandes e macios o suficiente para fazer com que quem se enrolasse nelas se sentisse abraçado por um peludo urso polar. Aquele banheiro era tão alvo e imaculado que Monique se sentia a pior pessoa do mundo ali dentro. Os pais tinham ido viajar, como de costume, e ficariam por volta de três semanas passeando por Munique. Nunca tiveram a decência de convidar a filha. O único som perceptível era o do jato de água forte caindo nos azulejos brancos. A água quente demais insistia em apagar qualquer manifestação artística de Monique no vidro do boxe. Ela estava encolhida no canto molhado, seu corpo esguio contorcido, os cachos desbotados desfaziam-se com o cair da água. Seu corpo nu tremia enquanto água escorria por ele e pelo vidro do boxe. Monique observou as gotinhas pingarem das pontas de seus cabelos e começou a contá-las. A vida era boa o suficiente, não era? Não lhe faltaram oportunidades no colégio e era até esperta o suficiente pra entrar em uma universidade, só não queria. Nos últimos meses havia se preocupado apenas em fumar demais, fazer sexo demais, beber demais, comer demais para depois vomitar demais. Roeu a unha do dedão já roída até a carne. Gostava daquele gosto metálico do sangue espalhando-se por sua língua. Sentia-se suja, suja. Contou as gotinhas que pingavam do cabelo até se perder nos números. Fazia sexo por motivo nenhum. Não tinha prazer nem no sexo, nem no café. O álcool só ajudava a passar pelo sexo, a comida ajudava a passar por qualquer resquício de sentimento, o vômito ajudava a escapar da gordura. Fazia tudo porque não tinha por que fazer. Insistia em macular seu corpo para magoar os pais. Mentira. Não era a mágoa que ela almejava, só um pouco de atenção. Um pouquinho de Munique. Os pais de Monique nem reparavam que ela estava tentando se destruir. Eles nunca flagraram-na saindo de casa no meio da madrugada. Nem perceberam que ela levava um cara diferente a cada final de semana para seu quarto. Nem que deixava carteiras de cigarro espalhadas por aí. Nem os barulhos que fazia para se livrar da comida. Nem que comia demais, nem que bebia demais. Era como se Monique não acontecesse naquela casa. Olhou para cima e deixou a água cair diretamente no seu rosto. Já sentia as pontas dos dedos um pouco entorpecidas, não tardaria para cair no sono. Daqueles frascos no armário, Monique havia pegado emprestado uns comprimidos. Só o suficiente pra ela não ter que acordar mais. A água quente já enrugara todas as partes possíveis de seu corpo. Não tardaria muito. Com um pouco de esperança, papai e mamãe perceberiam algo errado no boxe daquele banheiro quando voltassem de viagem.