Deu cinco da manhã e Chico acordou, como fazia religiosamente todos os dias. Fitou o teto por alguns segundos, procurando mudanças nas rachaduras. Sempre achava uma, mas não conseguia discernir se era uma rachadura nova ou se ele não era lá muito observador, mesmo. Num impulso, jogou os pezinhos sujos para fora da cama e calçou um par de havaianas amareladas grandes demais para ele. Arrastou os chinelos até a cama da mãe e estalou um beijo em sua testa suada de mulher doente.
Deu cinco e meia de manhã e Chico botou os pés pequenos para fora do barraco. Caminhou pelas ruas passeando os dedos pelas grades das casas grandes tratratratratra. Sorriu quando as cinco pontas da sua mão adormeceram ao mesmo tempo em que viu os faróis do primeiro carro do dia despontando no horizonte. Apressou uma corrida tropeçada nas havaianas enormes e torceu para que o sinal fechasse. Não fechou.
Deu seis da manhã e Chico pensou sobre como seria muito legal se ele tivesse muito dinheiro e pudesse levar sua mãe para um hospital muito bom cheio de médicos muito inteligentes que nem a dona Dorinha tinha dito que existia – e ela era muito esperta, ele podia confiar. O trânsito aumentou e Chico conseguiu uns trocados. Mais olhares feios que trocados, ninguém gosta de dar dinheiro pra criança no sinal porque todo mundo pensa que os pais dessas crianças são maus. Chiquinho ainda não tinha ouvido nenhum sermão nessa terça-feira. Pensou que às seis e meia da manhã ninguém tinha paciência pra dar bronca em menino de rua.
Deu sete da manhã e Chico cogitou talvez aceitar uma das propostas dos homens em carros grandes e pretos e brilhantes que ofereciam bastante dinheiro pelo seu corpinho. Só que a mãe de Chico já tinha dito pra que ele que não, não e não e se tinha alguém que Chico ouvia era sua mãe porque ele a amava imensamente. Mas será que ela não entendia que ele só faria essas coisas por amor a ela? Às sete e meia o vento já soprara para longe essas nuvens de pensamentos nebulosos e o sol rachava a cuca de Chiquinho.
Deu oito da manhã e Chico deu um pulo para trás porque achou uma carteira de couro bem gordinha na frente de uma casa com grade, das que ele gostava de passear os dedos. Sentou na calçada e alcançou a carteira com as mãos sujinhas e suadas. O couro fez suas mãos trêmulas suarem mais e mais. Puxou a camiseta puída até os joelhos e depositou, nota a nota, todo o dinheiro sobre ela. Duzentos reais. Duzentos e três reais e vinte centavos se ele contasse com os trocados que tinha conseguido. Chico tinha aprendido a somar com dona Dorinha.
Deu nove da manhã e Chico não sabia o que fazer com aquele dinheiro todo. Ficou com medo de levar de volta pro barraco porque podia ser assaltado no meio do caminho. Pensou em colocar no bolso, tava furado. Pensou em esconder num buraco, mas mudou de idéia logo porque sempre tem um cachorro idiota para achar esse tipo de coisa. Pensou que queria ser um pirata e ter um baú, só que ele não era. Aí ficou muito tempo observando o movimento, sentado com a camiseta esticada até os joelhos, os olhinhos nervosos denunciando sua indecisão.
Deu dez da manhã e passou um moço fardado. Perguntou se ele tava sozinho, Chiquinho disse que sim. Aí o moço disse que podia levá-lo a um abrigo, Chico falou que morava com a mãe. O moço falou “Vai pra casa, então, a rua é perigosa pra um menino da sua idade”, e Chiquinho não agüentou a pressão e mostrou a carteira que tinha achado. O guarda ficou sério de repente e o levou para a delegacia. “Eu não roubei, seu moço, acredita em mim. Achei no chão, eu juro, minha mãe tá doente e não tem remédio, seu moço, eu preciso do dinheiro.”
Deu onze da manhã e Chico sentou em uma cadeira alta. Um dos moços levou pra ele um prato de comida e disse que acharam o dono da carteira, que eles tinham que devolver. Chiquinho chorou – não pra persuadir, mas de tristeza mesmo. Não que fizesse alguma diferença pros moços de uniforme.
Deu meio dia e Chico tava de volta na rua, agora de barriga cheia e sonho vazio. As chances de achar outra carteira? De acordo com dona Dorinha, um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Pelo menos ele ainda tinha três reais e vinte centavos, que eram dele e ninguém tascava. Comprou um pão de sal numa padaria no meio do caminho pra casa.
Deu uma hora e Chico chegou no barraquinho, triste que só. Deu o pão à mãe e mentiu que a manhã tinha sido produtiva. Encheu um balde d’água e tentou esfriar a testa da mãe amada. Ela sorriu, mastigando o miolo do pão. Daqui a pouco Chiquinho voltaria lá pro sinal pra ver se conseguia dinheiro pra comprar remédio. Contou uma história bem bonita sobre o seu dia para a mãe suada, com pássaros e sol e barriga cheia. E rezou para que, à tarde, um raio caísse sobre ele novamente.