terça-feira, 12 de maio de 2009

Chico (da série eu só sei entitular com nome de personagem)

Deu cinco da manhã e Chico acordou, como fazia religiosamente todos os dias. Fitou o teto por alguns segundos, procurando mudanças nas rachaduras. Sempre achava uma, mas não conseguia discernir se era uma rachadura nova ou se ele não era lá muito observador, mesmo. Num impulso, jogou os pezinhos sujos para fora da cama e calçou um par de havaianas amareladas grandes demais para ele. Arrastou os chinelos até a cama da mãe e estalou um beijo em sua testa suada de mulher doente.  

Deu cinco e meia de manhã e Chico botou os pés pequenos para fora do barraco. Caminhou pelas ruas passeando os dedos pelas grades das casas grandes tratratratratra. Sorriu quando as cinco pontas da sua mão adormeceram ao mesmo tempo em que viu os faróis do primeiro carro do dia despontando no horizonte. Apressou uma corrida tropeçada nas havaianas enormes e torceu para que o sinal fechasse. Não fechou.

Deu seis da manhã e Chico pensou sobre como seria muito legal se ele tivesse muito dinheiro e pudesse levar sua mãe para um hospital muito bom cheio de médicos muito inteligentes que nem a dona Dorinha tinha dito que existia – e ela era muito esperta, ele podia confiar. O trânsito aumentou e Chico conseguiu uns trocados. Mais olhares feios que trocados, ninguém gosta de dar dinheiro pra criança no sinal porque todo mundo pensa que os pais dessas crianças são maus. Chiquinho ainda não tinha ouvido nenhum sermão nessa terça-feira. Pensou que às seis e meia da manhã ninguém tinha paciência pra dar bronca em menino de rua. 

Deu sete da manhã e Chico cogitou talvez aceitar uma das propostas dos homens em carros grandes e pretos e brilhantes que ofereciam bastante dinheiro pelo seu corpinho. Só que a mãe de Chico já tinha dito pra que ele que não, não e não e se tinha alguém que Chico ouvia era sua mãe porque ele a amava imensamente. Mas será que ela não entendia que ele só faria essas coisas por amor a ela? Às sete e meia o vento já soprara para longe essas nuvens de pensamentos nebulosos e o sol rachava a cuca de Chiquinho.

Deu oito da manhã e Chico deu um pulo para trás porque achou uma carteira de couro bem gordinha na frente de uma casa com grade, das que ele gostava de passear os dedos.  Sentou na calçada e alcançou a carteira com as mãos sujinhas e suadas. O couro fez suas mãos trêmulas suarem mais e mais. Puxou a camiseta puída até os joelhos e depositou, nota a nota, todo o dinheiro sobre ela. Duzentos reais. Duzentos e três reais e vinte centavos se ele contasse com os trocados que tinha conseguido. Chico tinha aprendido a somar com dona Dorinha.

Deu nove da manhã e Chico não sabia o que fazer com aquele dinheiro todo. Ficou com medo de levar de volta pro barraco porque podia ser assaltado no meio do caminho. Pensou em colocar no bolso, tava furado. Pensou em esconder num buraco, mas mudou de idéia logo porque sempre tem um cachorro idiota para achar esse tipo de coisa. Pensou que queria ser um pirata e ter um baú, só que ele não era. Aí ficou muito tempo observando o movimento, sentado com a camiseta esticada até os joelhos, os olhinhos nervosos denunciando sua indecisão.

Deu dez da manhã e passou um moço fardado. Perguntou se ele tava sozinho, Chiquinho disse que sim. Aí o moço disse que podia levá-lo a um abrigo, Chico falou que morava com a mãe. O moço falou “Vai pra casa, então, a rua é perigosa pra um menino da sua idade”, e Chiquinho não agüentou a pressão e mostrou a carteira que tinha achado. O guarda ficou sério de repente e o levou para a delegacia. “Eu não roubei, seu moço, acredita em mim. Achei no chão, eu juro, minha mãe tá doente e não tem remédio, seu moço, eu preciso do dinheiro.”

Deu onze da manhã e Chico sentou em uma cadeira alta. Um dos moços levou pra ele um prato de comida e disse que acharam o dono da carteira, que eles tinham que devolver. Chiquinho chorou – não pra persuadir, mas de tristeza mesmo. Não que fizesse alguma diferença pros moços de uniforme.

Deu meio dia e Chico tava de volta na rua, agora de barriga cheia e sonho vazio. As chances de achar outra carteira? De acordo com dona Dorinha, um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Pelo menos ele ainda tinha três reais e vinte centavos, que eram dele e ninguém tascava. Comprou um pão de sal numa padaria no meio do caminho pra casa.

Deu uma hora e Chico chegou no barraquinho, triste que só. Deu o pão à mãe e mentiu que a manhã tinha sido produtiva. Encheu um balde d’água e tentou esfriar a testa da mãe amada. Ela sorriu, mastigando o miolo do pão. Daqui a pouco Chiquinho voltaria lá pro sinal pra ver se conseguia dinheiro pra comprar remédio. Contou uma história bem bonita sobre o seu dia para a mãe suada, com pássaros e sol e barriga cheia. E rezou para que, à tarde, um raio caísse sobre ele novamente. 

terça-feira, 28 de abril de 2009

Promessa

Eu juro que nunca mais escrevo poema - esse foi só por obrigação. E como eu não posto aqui há muito, não custa atualizar. Não me apedrejem :)

Parecia doer mais que qualquer castigo
Aquela saudade que lhe bateu pela manhã
Na cama fria, ela procurava abrigo
Ardiam seus ossos com a culpa vã

Cansada da agonia do sentimento antigo
Implorou com fervor a Deus e a Satã
Queria dormir em paz e consigo
Como se afastar de um ímã?

Então, despiu-se de sua lembrança,
Mergulhou na solidão coesa
E, feito borboleta presa,
Morreu em sua destemperança

terça-feira, 7 de abril de 2009

Tempestade

Uma forte tempestade caía lá fora. Os pingos grossos batiam pesadamente no vidro com a intenção clara de ultrapassá-lo. A água escorria sinuosa pelas janelas, pelas sacadas, pelas calhas e pelas paredes do prédio até chegar à rua e correr livre. Sandra estava encolhida num canto da cama desarrumada, os olhos grandes muito vermelhos e a calça de moletom manchada de café em diversos pontos. Olhava fixamente para fora, absorvendo a chuva. Sua maior vontade era pular dali e escorrer pra algum lugar. Bater forte nos guarda-chuvas, nas pessoas e correr sem precisar voltar. Ouviu o barulho da chave girando na porta, levantou-se e foi até o banheiro. Parou em frente à pia e, encarando o espelho, abriu a torneira e deixou a água cair em suas mãos. Queria ser fria daquele jeito e fugir pelo ralo sem dar satisfações.

Danilo entrou em casa encharcado, tirou o casaco e os tênis molhados e colocou-os sobre a bancada da cozinha. Sentiu um arrepio desagradável quando uma gota gelada escorreu da nuca até o meio de suas costas. Decidiu que faria um pouco de café para esquentar o corpo. Enquanto colocava a água no fogo, desabotoou os primeiros botões da camisa úmida, passou os dedos entre os cabelos negros e respirou fundo. Sandra estava parada na porta, os olhos atentos na chaleira.

-Não agüento mais - falou, a voz um pouco afogada. - Não te agüento mais.

A água no fogão começava a ferver. Danilo olhou para a mulher tempestuosa a sua frente e sorriu seu sorriso morno.

Sandra arregalou os olhos marejados e trovejou enquanto a água borbulhava.

As lágrimas quentes correram por suas faces rubras e trêmulas.  Ele colocou a água fervente no pó de café. Olhou novamente para a mulher. Segurou uma de suas mãos languidas com a sua mão forte e entregou a xícara de café a ela, que ainda soluçava baixinho. A chuva enfraquecia e o café esfriava bem devagar. Danilo a abraçou com todo o seu calor e uma última lágrima evaporou do rosto de Sandra, anunciando a calmaria.

 

PS: Se eu pudesse, eu chamaria esse texto de "o maldito texto do elemento que eu não sabia nem por onde começar", então peço desculpas se o texto não ficou legal o suficiente. Grata :)

Pedrinho

Quando nasceu, numa tarde em que o sol frio por mais que insistisse não esquentava o orvalho da grama, Pedrinho ainda não tinha nome. Ele era pequeno, frágil e passava o dia inteiro quieto em cima de um galho de árvore, esperando que a brisa leve ficasse forte o suficiente para sacudi-lo pra lá e pra cá. A mãe morreu cedo, e logo as lembranças dela que Pedrinho tentava guardar com toda sua força se perderam pelos porões da memória. Era o xodó do pai, o molequinho predileto. Sempre que o pai conseguia arranjar um pedaço de bolo de fubá da casa grande, levava para Pedrinho. E ele mergulhava no bolo, se lambuzava todo até a barriga doer.

Quando o tempo estava quente, gostava de correr pela grama alta, de escalar e escorregar em caules de flores-do-campo e de se afundar na terra para sentir seu cheiro forte de fazenda. Nunca se esquecerá do dia mágico em que subiu num cavalo e viu tudo lá de cima. Os pêlos eram muito escorregadios e foi muito difícil chegar até o topo, mas Pedrinho tinha certeza que seu espírito era aventureiro. Logo ficou maior e começou a ajudar em casa. O trabalho era arriscado, mas simples. As regras eram claras: sair de casa, buscar comida, voltar pra casa. Sem dar atenção pra estranhos ou se distrair pelo caminho – e não era difícil se distrair naquela fazenda grande e colorida, cheia de animais diferentes. Pedrinho foi disciplinado por meses, até que um dia encontrou Carolina.

Carolina era uma criança sorridente de tranças ruivas meio desfeitas, olhos castanhos muito profundos e cílios de boneca. Ela estava sentada no chão e divertia-se ao arrancar grandes tufos de grama, jogá-los para cima e observá-los caindo lentamente. Resolveu que estava cansada, deitou-se na terra fofa e observou as nuvens e o céu até cochilar. Pedrinho não conseguia tirar os olhos daquela criatura tão enorme e adorável. Aproximou-se o suficiente para observá-la em detalhes. Contornou o perímetro da garota adormecida diversas vezes até escalar seu rosto. Passeou por montanhas de pintas e lagos de suor, pelos cílios longos e pelos lábios úmidos de criança. Subiu até a ponta de seu nariz e ali ficou, observando a paisagem, orgulhoso de seu feito. Carolina acordou e viu Pedrinho em seu nariz. Ela ofereceu o dedo, ele aceitou sem pestanejar. Ficou ali, brincando nas ondulações das digitais de Carolina, que o olhava atentamente.

– Pedrinho, disse a menina. Vou te chamar de Pedrinho, que nem o meu primo.

Pedrinho não tivera um nome até então. Fora batizado por aquela coisinha rechonchuda e ruiva, aquela graça, aquele mimo. Pensou estar apaixonado, era jovem demais para ter certeza.

– Eu sou a Carolina, disse ela, apontando para si com a outra mão.

A tarde caía e o sol alaranjado refletia nas tranças desfeitas. Pedrinho resolveu que não voltaria mais para casa. Sabia que nunca encontraria outro ser como aquele.

- O meu primo, o Pedrinho, é muito mau comigo, comentou. Ele puxa as minhas tranças e sempre me engana no pique-pega. Hoje ele me fez chorar, sabia? Mas ele é muito maior que eu, aí eu sempre acabo apanhando quando eu tento revidar. – Ela subiu o indicador até a altura dos olhos e continuou – Sabe, eu queria muito bater no Pedrinho. Queria arrancar os cabelos dele que nem ele arranca os meus. Sabe o que eu queria mesmo? Que ele fosse do tamanho de uma formiguinha pra eu poder esmagá-lo assim, ó.

E Pedrinho, que ainda era jovem demais pra entender o amor, não entendeu o ódio de Carolina pelo outro Pedrinho. Entendeu menos ainda quando ela juntou o polegar ao indicador e aí ele não foi capaz de entender mais coisa alguma. 

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Monique

Os diversos frascos de comprimidos para dormir meticulosamente organizados na prateleira do banheiro denunciavam a insônia da mãe de Monique. As toalhas brancas tinham fiapos grandes e macios o suficiente para fazer com que quem se enrolasse nelas se sentisse abraçado por um peludo urso polar. Aquele banheiro era tão alvo e imaculado que Monique se sentia a pior pessoa do mundo ali dentro. Os pais tinham ido viajar, como de costume, e ficariam por volta de três semanas passeando por Munique. Nunca tiveram a decência de convidar a filha. O único som perceptível era o do jato de água forte caindo nos azulejos brancos. A água quente demais insistia em apagar qualquer manifestação artística de Monique no vidro do boxe. Ela estava encolhida no canto molhado, seu corpo esguio contorcido, os cachos desbotados desfaziam-se com o cair da água. Seu corpo nu tremia enquanto água escorria por ele e pelo vidro do boxe. Monique observou as gotinhas pingarem das pontas de seus cabelos e começou a contá-las. A vida era boa o suficiente, não era? Não lhe faltaram oportunidades no colégio e era até esperta o suficiente pra entrar em uma universidade, só não queria. Nos últimos meses havia se preocupado apenas em fumar demais, fazer sexo demais, beber demais, comer demais para depois vomitar demais. Roeu a unha do dedão já roída até a carne. Gostava daquele gosto metálico do sangue espalhando-se por sua língua. Sentia-se suja, suja. Contou as gotinhas que pingavam do cabelo até se perder nos números. Fazia sexo por motivo nenhum. Não tinha prazer nem no sexo, nem no café. O álcool só ajudava a passar pelo sexo, a comida ajudava a passar por qualquer resquício de sentimento, o vômito ajudava a escapar da gordura. Fazia tudo porque não tinha por que fazer. Insistia em macular seu corpo para magoar os pais. Mentira. Não era a mágoa que ela almejava, só um pouco de atenção. Um pouquinho de Munique. Os pais de Monique nem reparavam que ela estava tentando se destruir. Eles nunca flagraram-na saindo de casa no meio da madrugada. Nem perceberam que ela levava um cara diferente a cada final de semana para seu quarto. Nem que deixava carteiras de cigarro espalhadas por aí. Nem os barulhos que fazia para se livrar da comida. Nem que comia demais, nem que bebia demais. Era como se Monique não acontecesse naquela casa. Olhou para cima e deixou a água cair diretamente no seu rosto. Já sentia as pontas dos dedos um pouco entorpecidas, não tardaria para cair no sono. Daqueles frascos no armário, Monique havia pegado emprestado uns comprimidos. Só o suficiente pra ela não ter que acordar mais. A água quente já enrugara todas as partes possíveis de seu corpo. Não tardaria muito. Com um pouco de esperança, papai e mamãe perceberiam algo errado no boxe daquele banheiro quando voltassem de viagem.